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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Testemunho da Composta

Antes do acidente eu vendia computadores e fazia poemas. Às vezes ia compondo meus versos e poesias sempre ao entardecer ou nos finais de semana. Cheguei até a escrever poesias inteiras dentro do ônibus pela manhã quando ia trabalhar. Distraí-me atravessando a rua e fui atropelado pelo luxuoso carro de um senhor chamado Nicanor.

“Um dia, quando tiver dinheiro,
conquistarei o seu amor
Passarei na Rua Vergueiro
e ...”

E. E o quê? Não sei. Não me lembro. Só sei que ao acordar eu estava num leito de um hospital muitos dias depois daquele acidente. Abri meus olhos e me deparei com o Sr. Nicanor me olhando desolado. Sem me lembrar direito do que havia acontecido percebi que algo havia mudado. Sem que eu dissesse uma só palavra o Sr. Nicanor, como que numa forma de telepatia fazia gestos com a cabeça dizendo que sim. Foi o pior choque que tive na vida. Aquele acidente fez com que eu quebrasse minhas duas pernas, correndo o risco de amputá-las. Mas, o Sr. Nicanor triste, com peso na consciência; logo que tive alta; levou-me para sua casa para morar com ele. (Seria remorso? Ou medo de se complicar? – pensei, mas não tive escolha.).
Éramos nós dois em seu casarão fora os seus empregados. Sem muito que fazer ele passou a cuidar de mim, disponibilizando uma equipe médica completa num rigoroso acompanhamento, num dos maiores quartos da mansão, que ele desocupou para me acolher no tratamento.
Ele era um grande empresário. Viúvo. Sem filhos e depois do acidente chegava bem mais cedo do trabalho para saber sobre minha recuperação, e durante longas horas, conversávamos intensamente, sobre todos os tipos de assunto: novelas, futebol, notícias, etc. Eu sabia que ele queria fazer de tudo para me agradar, pois desconfiava que eu fluísse corrente de ódio e de hostilidade reprimida.
Em compensação a cozinheira sempre me trazia ótimos lanches e refeições. Conversava pouco, mas num dos dias que me trouxe comida ela fez um comentário:

“O “seu” Nicanor é muito bom! Se não fosse ele nenhum de nós e nem a sua família teria condições de viver. Ele é muito generoso. Desde que eu vim do Nordeste a quinze anos atrás, nunca mais passei dificuldades quando o patrão me contratou. Você vai sair desta porque ele vai te ajudar. Ele é um Deus aqui na terra pra muita gente!”

Todos os dias eram assim. Eu notava em sua expressão facial uma mistura de preocupação, cansaço e enfraquecimento. De repente numa das tardes em que conversávamos depois de ter passado mais de quatro meses que eu estava deitado naquela mesma cama, sem sinais de melhora, o Sr. Nicanor teve um derrame e mesmo tendo sido socorrido pelos médicos que não saiam do meu quarto, não houve como poder evitar; e com um desconhecido e agravante diagnóstico, ele perdeu a fala. Ficou completamente sem voz.
Coisa triste. Agora estamos aqui, no mesmo quarto, um ao lado do outro, em silêncio.
Bateram na porta e eu disse: “Entra doutor”. Era o doutor de óculos. Melancólico pelo estado de nós dois, mas muito eficiente. Ele vinha todos os dias, e até duas vezes por dia se necessário. Eu observava tudo em silêncio, pois o Sr. Nicanor não falava mais, só gaguejava. Lembrei-me dos meu versos. Mentalmente fiz um de improviso:

“A medicina é um sacerdócio,
não conhece pausa nem ócio”.

Antes do derrame, o Sr. Nicanor fazia questão de que o médico me examinasse com rigor. Falava comigo apreensivo, se porventura eu tivesse que sofrer uma amputação ou sobre a possibilidade de um implante de pernas, próteses artificiais, etc.
Ele era dedicado. Não seria sua culpa, caso eu ficasse inválido. Agora; por causa dele, o mesmo doutor acompanha os dois casos. Só que comigo era bem rápido. O médico me dizia:
- Como vai? Bem? Ótimo, rapaz. Até logo.
O negócio é com o Sr. Nicanor:
- Vai melhorando, Sr. Nicanor? Está sentindo dores? E os remédios estão reagindo? Vamos medir os batimentos cardíacos? Depois mediremos sua pressão. Hoje vou falar para você sobre o resultado dos seus últimos exames...
Sr. Nicanor esforçava-se para responder. Seu rosto ficava vermelho. Suas veias do pescoço se dilataram. E finalmente:

-Gá-gá-gá-gá ...

Isto era a resposta dele. O doutor produzia um sorriso:
- Muito bem! “Está falando!”.

Depois de examiná-lo demoradamente, o Sr. Nicanor olha para mim. É assim que conversamos agora. No seu olhar ele tenta me dizer:
- “Viu! O doutor disse que estou melhorando!”
E eu respondo telepaticamente:
- “Mentira!”

A diferença no atendimento entre nós dois era bastante desigual. Como o infortúnio nos nivelou, pensei em mais um verso:

“Não há mais opressor
não há mais oprimido
Eu e o Sr. Nicanor
Estamos “no comprimido””.

Entra uma loira no quarto. Era Marília, sua sobrinha, perguntando:

- Então, Doutor? Como ele está?
- Nem bem, nem mal.
- Ele está melhor?
- Nem melhor, nem pior.
- E o coração?
- Assim, assado... Ele não está mais tolerando a “Composta”...

“Composta” era o nome do coquetel de injeções que ele tomava para o coração. Os comprimidos ele nem conseguia mais tomar, porque engasgava e não estavam mais fazendo efeito e também eram considerados fracos para o tratamento.

Ela puxou o doutor para o canto do quarto e perguntou:
- Quanto tempo ainda, doutor?
Ele suspira e disse em voz baixa:
- Pode ser uma semana, um mês, um ano...
Ela fica com a expressão do seu rosto bastante depressiva.
- Às vezes, doutor fico pensando... Todo este esforço, este sofrimento... Não seria melhor parar com os remédios de uma vez para o pobre do meu tio parar de sofrer?

Atentamente eu e o Nicanor escutávamos a conversa que estava num tom bem baixinho, mas dava pra ouvir. Fiquei enfurecido pensando: “Deixem o velhinho viver! Vocês só estão esperando ele morrer para me chutarem daqui! E eu como fico?”
Desanuviei e continuei:
“Que seja uma semana, um mês ou um ano, mas deixem a natureza completar o seu trabalho. Ela é sábia e sabe o que faz!”

Foi o que eu pensei na hora. Pensei, mas não podia dizer...

A sobrinha continuava:
- Isso é vida? É realmente vida? Uma alface tem mais vida que o meu tio, doutor!
- Mas... Minha jovem... – o médico ficou embaraçado.

Marilia inclina-se para frente e deixa aparecer seus belos seios. Notei logo - estou enfermo, mas, não estou inválido!

A expressão do rosto dela muda e a voz também, enchendo-se de ternura:

- Doutor, pense nas criancinhas. Milhares de criancinhas passando fome por aí. Já pensou quantas poderiam ser alimentadas com a fortuna que estamos gastando com o meu tio? Ele que está mais pra lá do que pra cá, cujo coração nem tolera mais a Composta?
Olhei para Nicanor e tive piedade. E por ela também. Parecia sincera. E um poeta não pode deixar de comover-se diante daquele altruísmo impotente:

“Aquela moça linda
passava por um sofrimento
não fazer a caridade
era o seu maior tormento.

E, no entanto pouco faltava
Para satisfazer sua intenção
Para o seu tio, melhor ficava
Se já estivesse no caixão”.

O médico despede-se sem poder o que fazer. A moça fica mais um pouco e logo depois sai.

“A moça vai
a noite cai;
é mais um dia que se vai...”

Na tarde seguinte quando o médico estava examinando Nicanor, entra Alfredo, seu cunhado e gerente de uma de suas fábricas.

- Então, Doutor? Como ele está?
- Nem bem, nem mal.
- Ele está melhor?
- Nem melhor, nem pior.
- E o coração?
- Assim, assado... Ele não está mais tolerando a Composta...

Alfredo sentou-se. Torceu com suas luvas nas mãos. Quis perguntar alguma coisa, mas teve um pouco de cautela. Hesitou. Por fim levanta-se e puxa o médico para um canto:

- Quanto tempo ainda, doutor?
Ele suspira e disse em voz baixa:
- Pode ser uma semana, um mês, um ano...
- UM ANO???
Alfredo bate nervosamente com as luvas na mão.

Afasta-se momentaneamente e vai até a janela. De lá mesmo, fala em voz baixa e sem expressão:
- Vou lhe dizer uma coisa, doutor. Acho que pouca gente ficaria triste com a morte dele.
- Como? – O médico fica indignado. - E os familiares? E os empregados de suas fábricas, para quem ele foi verdadeiramente um pai?
- PAI??? – ironicamente ri Alfredo – O senhor não sabe! Um carrasco, isto sim! Isto sim ele tem sido. Pagava baixos salários. Falava mal dos empregados. Punia todos a torta e a direita!

Nicanor, ouvia tudo atentamente e nem piscava.
Agora eram dos meus olhos que saiam lágrimas. Com o coração aflito compus:

“Não posso ver essa cena
As lágrimas saem em jorro
Como pode um doente
Ser tratado como um cachorro!”

O doutor, atônito, nem responde e sai.

“Alfredo sai
a noite cai;
é mais um dia que se vai...”

No outro dia à tarde, entra Maria, irmã do doente. Com as mesmas perguntas de sempre: “- Então, Doutor? Como ele está? - Nem bem, nem mal...”


Maria puxa o doutor para um canto e já vai direto ao assunto:
- Se a gente herdasse logo, doutor... Tenho um filho que vai cursar a Faculdade...

Justamente neste momento entra um jovem rapaz, cumprimenta o médico, intera-se do assunto e rouba as palavras da mãe:
- Minha mãe tem razão, doutor. Meu sonho é entrar na Faculdade de Medicina. Sou órfão de pai. Preciso de dinheiro para o cursinho, para os livros. Ajude-me, doutor! É no seu modelo que eu me inspiro e pretendo ser. Seja solidário com um futuro “colega” de profissão!

O médico fica horrorizado com a família e grita:
- FORA!!!
- Fora, seus abutres! Está faltando um pouco de amor em quase todos vocês!

O médico pegou sua malinha e saiu. Logo em seguida saíram os dois.

“Não, posso acreditar!” – disse-me Nicanor com os olhos.

Parecendo adivinhar o que Nicanor pensava, eu disse em voz tenra:
- Ora, Nicanor. Estão nervosos. Mas no fundo querem o teu bem.
“Será?” – seus olhos perguntaram-me.
“Vai ser!” – responderam meus olhos.

A enfermeira chega (eram duas: uma para o dia e outra para o plantão noturno) e começa a preparar a injeção da Composta. Logo em seguida, entra a sobrinha com os olhos cheios de lágrimas:

- Querido tio, estou arrependida! Que posso fazer por ti?
- Pode deixar, enfermeira – grita a sobrinha - que eu mesma vou aplicar a injeção no meu tio.
- Isso é trabalho meu – diz a enfermeira, secamente – Sai do meu caminho, faz favor.
Marília toma-lhe a seringa. Descontrolada e muito nervosa ela replica:

- Mulher estúpida! Bruxa! Não admito que meu tio neste estado tão doente, seja tratado por megeras desqualificadas como você. Ponha-se pra fora imediatamente!

A enfermeira sai ofendida revidando com palavrões e promete vingar-se e processar a família por danos morais, calúnias e difamações.
Marília aplica a injeção no tio, ajeita-lhe as cobertas, despede-se com um beijo na testa e vai embora.

Pouco tempo depois entra Alfredo:
- Estou arrependido, meu querido cunhado!
Arrependido e revoltado, pois havia encontrado a enfermeira no portão dizendo: “Ainda bem que não preciso mais aplicar injeção naquele velho, não faço mais nada...”. Alfredo estava indignado.
- Aquela enfermeira cretina não cuidava do senhor! Agora as coisas vão mudar. Eu mesmo cuidarei de tudo, até das injeções, assim como faço em uma de suas fábricas.
Pega uma seringa esterilizada e prepara a injeção da Composta.

- Gá, gá, gá, gá... – Nicanor apavorado tenta tirar o braço do cunhado.

- Prefere nas nádegas. Coitado! Deve estar com os braços arrebentados das injeções aplicadas por aquela enfermeira cretina.

Eu tento intervir:
- É que... – digo, timidamente.
- Cala a boca parasita! – berra Alfredo. – Contigo vou ajustar as contas depois.
Fiquei calado e vi Alfredo aplicando a injeção e sair.

Em silêncio vi Maria chegar. Ela morava em frente à janela do quarto. Entrou dizendo:
- Eu vi tudo, irmão! Da minha janela vi a enfermeira te espancando. Aquela ordinária! Pode deixar que eu vou te ajudar.
Aplica a injeção e sai. Logo em seguida entra o “futuro médico”, que andava seguindo a enfermeira. Pra ele, ela era gostosinha.

- Querido tio! Soube que a enfermeira não lhe aplicou a injeção e, além disso, não vai mais trabalhar aqui. Não se preocupe. Ela era incompetente. Além disso, frígida. Quem vai cuidar do senhor agora sou eu. O senhor vai ver como eu tenho prática.
E tinha mesmo. Em um minuto aplicou a injeção e saiu.

Chegou a enfermeira da noite e viu que na prancheta de anotações dos medicamentos não havia sido registrada nenhuma aplicação da injeção Composta.
Preocupadíssima logo preparou uma seringa e disse:
- Que vagabunda! Ganha uma fortuna e nem aplicou a injeção no pobre homem!


Quanto a mim, sempre não pude falar nada naquele quarto. Quando sarasse, preferia escrever e compor meus versos. Mas em atenção ao velho, eu murmurei algo para a enfermeira que saiu e não me ouviu.
“Aqui está frio. Eu estou com frio e o Nicanor também está com frio.”

Nem ela, nem ele me ouviram. Ninguém mais me dava atenção. Foi uma pena.

“Aqui está frio
E o Nicanor vai morrer
Não me causará arrepio
Quando ele falecer.”

“Não lhe deram remédio em líquido
Nem lhe deram remédio em pó
E nem quiseram me ouvir
Ao menos uma palavra só.”

“E assim morre Nicanor
De tanto tomar injeção
A ganância sem pudor
É de quem não têm coração.”

..

Um comentário:

Anônimo disse...

Cara, adorei.
Só tive como ler hoje e vou confessar que depois que comecei não parei enquanto não acabou.

Pobre Nicanor.
ahhaha

abraço e fica com Deus meu amigo
Luiz

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